Castelo de Marialva



“Marialva foi chamada, em antigos tempos, Malva. Antes de o saber, o viajante julgou que seria contracção de um nome composto, Maria Alva, nome de mulher. E ainda agora não se resigna a aceitar que o primeiro baptismo venha do rei de Leão, Fernando Magno, como dizem certos autores. Sua Mercê não veio, evidentemente, de Leão aqui para ver se a esta montanha quadrava bem o nome de Malva. Curou por informações, algum frade bem por cá passou e tendo visto malvas julgou que era a terra delas, sem reparar, em seu recato de frade preceituado, que naquela casa hoje arruinada vivia a mais bela rapariga do monte, precisamente chamada Maria Alva, como ao viajante convém para justificar e defender a sua tese. A quem viaja hão-de ser perdoadas estas imaginações, ai de quem as evitar, não verá mais do que pedras caladas e paisagens indiferentes.
De indiferente e calado se não pode acusar o castelo. Nem de vila velha, as ruas que trepam a encosta, nem quem aqui mora. … O viajante entra no castelo, daqui a bocado virá o velho Brígida dizer onde está a arca da pólvora, mas agora é um solitário que vai à descoberta do que, a partir deste dia, ficará sendo, no seu espírito, o castelo da atmosfera perfeita, o mais habitado de invisíveis presenças, o lugar bruxo, para dizer tudo em duas palavras. Neste largo onde está a cisterna, onde o pelourinho está, dividido entre a luz e a sombra, adeja um silêncio sussurrante. Há restos de casas, a alcáçova, o tribunal, a cadeia, outros que não se distinguem já, e é este conjunto de edificações em ruínas, o elo misterioso que as liga, a memória presente dos que viveram aqui, que subitamente comove o viajante, lhe aperta a garganta e faz subir lágrimas aos olhos. Não se diga daí que o viajante é um romântico, diga-se antes que é homem de muita sorte: ter vindo neste dia, nesta hora, sozinho entrar e sozinho estar, e ser dotado de sensibilidade capaz de captar e reter esta presença do passado, da história, dos homens e das mulheres que neste castelo viveram, amaram, trabalharam, sofreram, morreram. O viajante sente no Castelo de Marialva uma grande responsabilidade. Por um minuto, e tão intensamente que chegou a tornar-se insuportável, viu-se como ponto mediano entre o que passou e o que virá. Experimente quem o lê ver-se assim, e venha depois dizer-me como se sentiu.”


in José Saramago "Viagem a Portugal"